segunda-feira, 19 de abril de 2021

"Mulher séria não tem ouvidos"

 Este é aquele assunto sobre o qual nunca me vou fartar de falar. Porque continuamos a precisar de informação, precisamos de continuar a desmistificar que a vítima não é a culpada do assédio e que usar uma blusa decotada, ou uma mini saia não dá o direito a ninguém de vomitar seja aquilo que for.

Não vi a entrevista da Sofia Arruda ao Daniel Oliveira mas pelos comentários que fui lendo durante o fim de semana constatei mais uma vez que ainda estamos muito aquém daquilo que era suposto. E sabem o que me assusta mais? É que os comentários mais atrozes são feitos por mulheres, são feitos por mães, tias, avós onde a informação que querem passar é que a culpa do assédio sexual é nossa. Nos últimos dois dias li coisas como "querem ser faladas então inventam de tudo", "se é verdade porque não denunciou na altura?" "porque é que não diz o nome de quem a assediou?". Só me ocorre uma palavra para classificar isto. Nojo.

Porque é que a vítima tem que ser sempre a culpada, porque é que as questões são colocadas a quem sofreu? Porque é que duvidamos em vez de apoiarmos e mostrarmos empatia? Estamos a ensinar as nossas meninas a não falarem caso isto lhes aconteça, porque provavelmente vão questioná-las, vão perguntar que sinais deu quando não existem sinais que justifiquem a invasão do nosso espaço. 

A Sofia teve a coragem de se expor e contar a sua história ainda que sem referir nomes, a Sofia precisa de saber que é apoiada e que tem pessoas do lado dela, sobretudo mulheres. E se não for assim de que nos vale falarmos de feminismo se quando as mulheres precisam das mulheres são empurradas para baixo?

Já ouvi frases, uma dirigidas a mim outras em contexto de conversa, que enquanto mulher e mãe de duas meninas me magoaram. "Mulher séria não tem ouvidos", "não estou para ouvir falar da minha filha como ouço falar das outras por isso não usas essa saia", "se sais assim vestida é porque estás a querer provocar", "estás a pedi-las, depois não queixes". 

E sabem porque é que me magoa? Porque eu deveria ter uns 10 anos quando comecei a ser vítima de assédio sexual. Eu era uma criança e ouvi as coisas mais nojentas que possam imaginar e que me cortam o coração só de as lembrar. Ouvi coisas que ninguém deve ouvir, fui convidada várias vezes a ir a casa dele. Contei, contei a quem pude, os vizinhos também sabiam. Sabem quem acreditou em mim? Ninguém. Ninguém acreditou em mim porque "o que é que um homem com aquela idade iria querer contigo", "tu implicas com o homem e agora estás a inventar isso, ele até é simpático e está sempre a dar fruta das árvores dele". Ele tinha idade para ser meu avô. Era porco e ainda hoje consigo sentir nojo dele e tudo aquilo que me disse.

Sabem o que é que a ex mulher dele disse? Que ele era capaz disso e de muito mais. Sabem quem passou a acreditar? Ninguém.

Anos depois um chefe passou a mão nas minhas costas, pedi-lhe que não o voltasse a fazer. Sabem o que aconteceu? O meu contrato não foi renovado.

Portanto, validem as denúncias que vos são feitas. Estejam atentos aos sinais que vos são dados e que possam indiciar algo que não é normal mas acima de tudo, por favor não ignorem a denúncia de uma criança.

Apoiemos as "Sofias" que por aí andam e que muitas vezes não denunciam porque não se querem expor com receio de serem julgadas e descredibilizadas. 

Eduquem as vossas filhas de forma a que ninguém as faças pensar que aquele toque que as deixa desconfortáveis é normal e faz parte do crescimento. 

Eduquem os vossos filhos de forma a que também eles denunciem, porque este assunto não exclusivo de meninas, a que apoiem a colega que lhe contou algo que não parece normal. Ensinem os vossos filhos a respeitar.

Eduquemos os nossos filhos que o assédio não é normal.

E por último, sejam mulheres que apoiam mulheres.

foto google


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