segunda-feira, 24 de maio de 2021

Tributo ao meu cão

 Estamos no terceiro dia deste que foste embora para um sítio onde já nada dói, onde vês, ouves, não tens dores em toda a tua coluna, dores na tua boca que te impedem de comer. Onde o stress e quiçá a própria dor fazem com que arranques o teu próprio pêlo, pêlo que perdeu todo o brilho, ganhou peladas e foi caindo. Como tu. Nos últimos seis meses perdeste toda a vontade que tinhas de viver. Já não ias até à sala, já não saltavas quando vias a trela ou vinhas até mim quando eu te acenava.



Começaste a ficar cada vez mais no mesmo sítio, confesso que achei estranho mas julguei que era por causa da proximidade da comida. Recusavas-te a sair debaixo da mesa e nem quando te comprei uma caminha fofa e macia tu saíste de lá. 



Quando te escovava ganias imensamente, quando te colocávamos trela acontecia o mesmo. Na rua perdias a noção do espaço e subir umas escadas já era uma tarefa dura porque não vias os degraus. Quando te pegava ao colo tinha que o fazer com cuidado porque a coluna doía. No último mês começaste a perder o controlo das tuas necessidades fisiológicas e foi nessa altura que comecei a ter consciências que os teus 18 anos estava definitivamente a pesar. Vi-me forçada a dar-te banhos quase diários porque muitas eram as vezes que não te levantavas quando tinhas vontade de fazer xixi. E isso não era vida. 


Há 10 anos, corria o início de 2011 e eu era uma recém-independente. Vi-te numa foto que contava a tua história. Uma menina de 8 anos deixada no canil municipal pelos donos. Das mais velhas do canil e por isso em risco eminente de eutanásia já que o canil, como sempre, está a rebentar pelas costuras. Falei com o P. que se mostrou reticente, vivíamos juntos havia pouco tempo e era uma grande responsabilidade. Pedi reforços e a resultou. Dois ou três dias depois combinámos ir buscar-te na minha hora de almoço quando a Rita me liga e diz "ammm, Diana, "ela" acabou de levantar a pata na roda do meu carro". Concluí que o pessoal do canil nem te tocou quando lá entraste... Naquele momento o meu maior problema foi ter que devolver todo o stock de rosas e brilhantes que tinha já em casa... 


Vieste connosco e passaste os primeiros tempos de costas para a parede, não dormias, estavas sempre atento e demorou tempo a ganhar a tua confiança. Nesse mesmo ano levamos-te de férias e percebemos logo que além de seres um amigo que deixava transparecer o trauma que tinha detestavas água, areia, e tudo o que te tirasse o sossego. 

Dormiste comigo no sofá, aos meus pés na minha cama. Mudámos para uma casa maior com espaço para ti e para o Reef que chegou meses depois. Assististe à forma como mandei à merda todos os vizinhos que implicaram, e implicam, connosco porque temos dois cães. Viste a Mafalda nascer e mais tarde acompanhaste a chegada da Bia e dormiste ao lado do berço dela.


Na semana passada quando comecei a tomar efetiva consciência do teu estado levei-te ao médico com o pensamento de que não te tinha tirado do canil municipal há 10 anos para agora te ver definhar enquanto ganias com dores, comias cada vez menos e urinava sobre ti mesmo. Levei-te ao médico na esperança de conseguir validação para aquilo que sentia, para saber o que seria melhor a fazer sempre com a certeza de que a tua dignidade estaria acima de tudo. Mas não. Vim de lá contigo e com uma enorme sensação de injustiça, de aproveitamento comercial daquilo que deveria estar acima de tudo, amor e respeito pela vida de um animal. Quiseram encher-te de medicamentos que a única coisa que fariam seria prolongar o teu sofrimento, disseram-me por meias palavras que tínhamos a obrigação de fazer com os animais o mesmo que fazemos connosco, tentar ajudar antes de pensar naquela coisa que é a última decisão. Saí de lá com sensação de que estava a ser acusada de me querer livrar de ti, que não queria cuidar-te e dar-te aquilo que poderia salvar-te. Foi nesse momento que pensei que se eu, humana, vivesse com dores constantes, não conseguisse ver ou ouvir, não conseguisse comer e passasse os meus dias a olhar para o nada, eu humana saberia que queria descansar com dignidade.


Então procurei outra opinião, porque se os humanos (palavra que ouvi no primeiro consultório) têm direito a pedir segundas opiniões e porque a sensação de ter se terem aproveitado de nós não desaparecia, pedi ajuda e a ajuda foi-me dada. Expliquei o teu caso, contei a tua história toda e não vi, não ouvi nem senti olhares semicerrados, sobrancelhas levantadas nem um tom de voz seco e áspero como se eu quisesse cometer um crime. 

Levei-te a alguém que me deu compaixão, empatia e as várias opções disponíveis. Disse-me também que independentemente do tratamento a visão iria continuar a desaparecer, a audição não voltaria e todos os teus outros problemas tenderiam a agravar. Iriamos arrastar as tuas dores por mais uns meses, um ano quiçá e a tua dignidade iria continuar a descer.

Então tomei a decisão que nos pareceu a mais acertada. Não decidi sozinha. A pessoa que tinha à minha frente confortou-me, disse que te tinha dado vida durante 10 anos e que respeito também é isto. 


Encostei-te a mim, encostei a minha cara a ti, fiz-te festinhas e disse que ia passar tudo bem. Tu foste tranquilizando e partiste da mesma forma que entraste na minha vida. Junto a mim e com muitas festinhas.

Sei que não fui perfeita em tudo e peço desculpa por isso mas espero profundamente ter conseguido dar-te a dignidade, o conforto, o respeito e a paz que merecias.

Resta-me agora pedir-te que abraces a Diva e lhe digas que me despedi de ti com o amor que não foi permitido dar-lhe quando ela partiu. Porque não me deixaram fazê-lo. 

Esperem por mim, um dia destes voltamos a estar juntos ❤

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